Flávia Lefèvre: Starlink e soberania nacional

No último dia 8 de abril deste ano, a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) autorizou o pedido de alteração de outorga da Space Exploration Holdings, LLC, que atua no Brasil pela Starlink, ambas as empresas controladas por Elon Musk, para ampliação do número de satélites de baixa órbita em operação no território brasileiro para viabilizar o uso de novas faixas de radiofrequências (na Banda E), estabelecendo o pagamento da irrisória taxa de R$ 102,6 mil como contrapartida; valor este que deve equivaler ao que Elon Musk dá para o pequeno Æ A-Xii comprar lanche no recreio do jardim de infância.

A licença obtida em 2022 pela Starlink, concedida ainda no governo de Jair Bolsonaro, no contexto de declarações públicas de “I love you” feitas pelo então Ministro das Comunicações Fabio Faria e pelo então Presidente da República, contempla a operação de 4.400 satélites, com prazo até março de 2027. Com a mais recente decisão da ANATEL a empresa poderá operar mais 7.508 satélites.

A decisão da ANATEL chama atenção pois, no dia 3 de abril, a agência havia aprovado mais 120 dias para decidir sobre o pedido da Starlink, a fim de que houvesse mais análise a respeito de possíveis impactos do aumento volumoso de satélites, especialmente no que diz respeito às garantias concorrenciais, sustentabilidade espacial e soberania digital.

Curiosamente, cinco dias depois, a agência aprovou o pedido, sem as análises necessárias, conforme indicado pelo relator do processo no Acórdão 91 – o Conselheiro Alexandre Freire. É certo que na decisão encontram-se alertas justificados em riscos concretos e indicação de medidas a serem adotadas:

10. Diante dos efeitos decorrentes da intensificação da exploração comercial de satélites de órbita baixa, emite-se alerta regulatório com vistas a destacar a atualização em curso do marco normativo vigente, especialmente frente aos riscos identificados nos domínios concorrencial, da sustentabilidade espacial e da soberania digital.

11. Determina-se que o Comitê de Infraestrutura de Telecomunicações – C-INT e o Comitê de Espectro e Órbita – CEO promovam, com a devida urgência, discussões técnicas e desenvolvam estudos aprofundados destinados a subsidiar a Análise de Impacto Regulatório (AIR) referente à iniciativa no 24 da Agenda Regulatória 2025-2026, considerando as diretrizes internacionais aplicáveis, bem como os princípios de sustentabilidade, eficiência no uso do espectro, segurança das redes, soberania nacional e promoção da concorrência.

Entretanto, acredito, e não estou sozinha, que as considerações formuladas pela ANATEL nem de longe são suficientes para impedir a ocorrência de danos concretos em setores estratégicos e determinantes, apontados pela própria agência, para garantir não só a soberania digital, com possíveis deletérias e graves consequências para as instituições democráticas nacionais, mas também para a segurança de milhares de consumidores que contratam cada vez mais os serviços da Starlink.

Quando digo que não estou sozinha quanto ao entendimento de que há riscos concretos decorrentes da ampliação volumosa da exploração comercial de satélites de Elon Musk no Brasil, é porque também outras empresas, como a Viasat por exemplo, que opera o satélite geoestacionário brasileiro, manifestaram-se oficialmente no processo relativo ao pedido administrativo da Starlink.

A Viasat, cuja manifestação no processo sequer foi aceita pela ANATEL, ponderou que a Starlink teria uma posição favorável em 68% do espectro viável, incluindo a parte que diz respeito ao sinal de satélite para dispositivos como smartphones e que “o pleito representaria a operação de sua rede sem considerar as disposições sobre compartilhamento de espectro e restrição do livre uso e exploração do espaço sideral em base de igualdade nos termos do Tratado do Espaço Sideral para nações emergentes do espaço”.

Mais preocupante ainda, como bem levantado pelo Ministro Alexandre de Moraes, em palestra que proferiu no dia 11 de março na abertura de curso sobre democracia e comunicação digital organizado Fundação Getúlio Vargas e Advocacia Geral da União, são os riscos políticos envolvidos no projeto de ampliação da infraestrutura e penetração no mercado de prestação de serviço de conexão a Internet no varejo pela Starlink. Naquela ocasião, disse o Ministro Alexandre de Moraes: “Por enquanto nós conseguimos manter a nossa soberania. É uma questão de soberania nacional. E a nossa jurisdição. Porque as big techs necessitam das nossas antenas e dos nossos sistemas de telecomunicação. Por enquanto”, afirmou.

E Xandão disse mais: “Não é por outros motivos que uma das redes sociais tem como sócio uma outra empresa chamada Starlink e que pretende colocar satélites de baixa órbita no mundo todo para não precisar das antenas de nenhum país. No Brasil hoje só tem 200 mil pontos. A previsão é chegar em 30 milhões de pontos, no Brasil. E aí não adianta cortar antena”, disse o ministro. “É um jogo de conquista de poder, sendo feito ano após ano, e, se a reação não for forte agora, vai ser muito difícil conter depois”, disse.

E é interessante que o Grok – inteligência artificial do X/Twitter, do mesmo Elon Musk, concorda. Vejam o que a IA me respondeu quando perguntei se a ampliação tão intensa de satélites da Starlink ofereceria riscos à soberania nacional:

“Um dos principais pontos de preocupação é a possibilidade de a Starlink operar de forma independente das redes nacionais, roteando o tráfego de dados diretamente por seus satélites, sem passar pela infraestrutura brasileira. Isso poderia dificultar a fiscalização pela Anatel e a aplicação de normas locais, como ordens judiciais de bloqueio ou interceptação de dados em investigações. (…)

Outro risco levantado é o uso potencial da infraestrutura da Starlink como instrumento de pressão geopolítica. Como Elon Musk, dono da Starlink, tem vínculos com o governo dos Estados Unidos (atuando como chefe do Departamento de Eficiência Governamental desde 2025), há temores de que, em cenários de crise internacional, o serviço possa ser interrompido ou manipulado por interesses externos, afetando usuários brasileiros, especialmente em áreas remotas como a Amazônia, onde a dependência da Starlink é crescente”.

E o Grok, quando perguntado, levantou também outros riscos como a segurança de dados, como um fator crítico, afirmando que “com o tráfego potencialmente processado em servidores fora do Brasil, há dúvidas sobre o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o risco de acesso a informações sensíveis de cidadãos”, empresas e órgãos públicos, que já contratam os serviços da Starlink, como a Marinha, o Exército e alguns tribunais brasileiros, além de milhares de escolas públicas.

Quanto aos riscos de comprometimento do ambiente concorrencial, a ampliação significativa da atuação da Starlink pode consolidar ainda mais sua posição dominante no mercado brasileiro de acesso a internet via satélite, pois, de acordo com dados da ANATEL, a empresa já detém cerca de 58,6% dos 570 mil acessos, com mais de 335 mil usuários (dados de março de 2025). A ampliação para mais de 11 mil satélites, utilizando tecnologias de segunda geração (Gen2), pode aumentar a capacidade e a qualidade do serviço, tornando difícil para concorrentes menores, como Hughes (29,8% do mercado), Viasat (3,5%) e Telebrás (2,9%), competirem em preço e desempenho.

Ou seja, a expansão autorizada pela ANATEL, no atual estado da arte, com a expectativa de revisão incerta e futura nas normativas hoje em vigor e na ainda eventual atuação dos Comitês de Infraestrutura de Telecomunicações – C-INT e o de Espectro e Órbita – CEO, para que promovam estudos capazes de impedir desequilíbrio no mercado, é incontornavelmente temerária.

É inegável que, diante da histórica negligência do Ministério das Comunicações e da ANATEL para definir e implementar políticas públicas para a inclusão digital, e de recentemente a União ter entregado de forma irresponsável e sub-avaliada mais de R$ 100 bilhões de patrimônio público para empresas como a V.Tal controlada pelo BTG Pactual e para a Telefônica, que poderiam ser investidos na Telebrás, de modo a fortalecer a infraestrutura nacional, tem sido a Starlink a responsável por conectar especialmente o Estado do Amazonas, mas numa dinâmica crescente e bastante relevante sua presença em todo país, conforme tabela publicada pela Teletime, com base em dados da ANATEL de fevereiro deste ano:

 

A intenção da Starlink com o pedido de ampliação de satélites operando no Brasil é expandir muito sua atuação não só para o mercado de infraestrutura, mas também no varejo, o que irá acentuar a dependência do país à sua infraestrutura, mas também aos serviços que passará a prestar no país, sem as devidas garantias voltadas para a proteção da segurança dos dados, dos direitos do consumidor, da concorrência e da soberania nacional.

A decisão da ANATEL, portanto, lança o país em situação de extrema vulnerabilidade, dado o cenário da geopolítica internacional e da possibilidade de associações que já começaram a acontecer entre a empresa de infraestrutura de Musk e as big techs estadunidenses, hoje declaradamente alinhadas com Donald Trump, que vem respaldando a resistência de regulação das plataformas no Brasil e no mundo.

 

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