O governo dos Estados Unidos deve apresentar em breve os detalhes do Plano de Ação para Inteligência Artificial (AI Action Plan), que trará diretrizes voltadas a garantir a hegemonia global das companhias americanas no setor de IA. Uma delas, defendida por OpenAI, Google, Microsoft, e outras, é a que tornaria uso aceitável (fair use) o treinamento de IAs com material protegido por direitos autorais.
Tudo indica que o presidente Donald Trump pensa da mesma forma: ele demitiu a diretora do Departamento de Direitos Autorais dos EUA, “coincidentemente” após submeter um relatório apontando que o uso de conteúdo com copyright não seria fair use.

Big techs querem que treinar IAs com material protegido por copyright seja considerado uso aceitável, para não pagarem nada a ninguém (Crédito: Sarah Grillo/Axios)
Trump e IA vs. copyright
Vamos dar uma repassada nos fatos até aqui:
O uso aceitável é uma doutrina da lei de direitos autorais dos EUA, onde o uso de conteúdos protegidos por copyright é permitido de forma livre, ou seja, sem que haja a necessidade de pagar, sem restrições, e sem a necessidade de pedir permissão. O conceito é aplicável em casos bastante específicos, mirando soluções que prometem trazer benefícios à sociedade, como com desenvolvimentos envolvendo saúde e educação, ou produtos e bens acessíveis.
Em tese, é possível aplicar o uso aceitável em produtos e serviços comerciais, no que o caso mais emblemático foi o processo movido pela Oracle contra o Google. Quando a companhia de Larry Ellison comprou a Sun Microsystems em 2011, ela descobriu que o Android fazia uso de algumas APIs do Java, via um acordo verbal entre a Sun e a Android Inc. (a empresa original de Andy Rubin), esta posteriormente absorvida por Mountain View, onde nada foi formalizado.
A Oracle, como dona da Sun, entendeu ter o direito de propriedade das APIs, e abriu um processo por infração de direitos autorais retroativo, exigindo o pagamento de US$ 8,8 bilhões (~R$ 49,93 bilhões, cotação de 12/05/2025) em royalties atrasados. O Google se defendeu usando a carta do fair use, dizendo que o Android, mesmo sendo um produto comercial (onde originalmente o conceito não se aplicava), beneficiou a sociedade ao revolucionar a telefonia móvel.
Sim, todo mundo sabe que o iPhone chegou primeiro, ao ponto do Google ter que refazer o Android do zero; ele originalmente seria similar a um BlackBerry da época, com teclado físico e sem tela touch.
De qualquer forma, a desculpa do Google colou junto à Suprema Corte, e as big techs usam essa decisão (nova tecnologia comercial que beneficiará a sociedade) como um precedente. O objetivo, defender o uso de material com copyright para treinar IAs sem ter que pedir permissão para coletarem o que quiserem de quem quer que seja, e mais importante, sem ter que pagar um centavo a ninguém.
A OpenAI foi a primeira companhia a se manifestar nesse sentido, ao argumentar que a IA generativa “trará benefícios” à sociedade, ao mesmo tempo que defende o uso de material com copyright sem pagar para criar soluções pagas, incluindo produtos concorrentes. No entendimento do CEO Sam Altman, é “impossível” que algoritmos sejam treinados apenas com conteúdos em domínio público, ou disponibilizados por regras de copyleft e/ou código aberto, no caso de coleta de código-fonte alheio, que também é passível de direitos autorais.

Vitória do Google sobre a Oracle é usada como precedente para uso aceitável no treinamento de IAs (Crédito: Reprodução/Shueisha/Ronaldo Gogoni/Meio Bit)
Outros concordam com os argumentos da OpenAI; Mustafa Suleyman, CEO da Microsoft AI, por exemplo, disse que as companhias devem ser livres para treinar seus modelos com quaisquer obras disponíveis na internet, usando de forma não-irônica o meme “se está na net, é de graça”; já o Google endossou, com a OpenAI, a quebra de copyrights e o reconhecimento do uso aceitável junto ao governo de Donald Trump.
Oficialmente, as diretrizes do Plano de Ação para IA deverão ser introduzidas em julho de 2025, mas paralelo a isso, o vice-presidente J.D. Vance declarou, durante o AI Summit 2025, que os EUA manterão a hegemonia no setor graças à desregulação dos algoritmos, e exigiu que os demais governos façam o mesmo e não atrapalhem os negócios das big techs americanas, dando a entender que haverá consequências (taxas, provavelmente) a quem não seguir o que a Casa Branca determinar.
Corta para o dia 9 de maio de 2025, e o Departamento de Direitos Autorais dos EUA publicou um relatório (cuidado, PDF), detalhando sua opinião sobre os desafios que as IAs representam para as leis vigentes. Ele diz que a aplicação do uso aceitável dependerá “dos materiais coletados, a fonte, para qual propósito, e com quais limitações”, onde considera usos para fins de pesquisa e educacionais como soluções válidas.
Já sobre uso comercial, o relatório é enfático ao concluir que “fazer tal uso ao coletar quantidades enormes de material protegido por direitos autorais, para produzir conteúdos expressivos e competidores (com as fontes) nos mercados existentes, especialmente fazendo-o por acesso ilegal (não autorizado pelos detentores dos copyrights), vai muito além dos limites estabelecidos pelo conceito do uso aceitável”.
No dia seguinte, 10 de maio, Trump demitiu a diretora Shira Perlmutter; o presidente já havia demitido um dia antes Carla Hayden, diretora da Biblioteca do Congresso dos EUA (órgão ao qual o Departamento de Direitos Autorais é subordinado) por, segundo a secretária da Casa Branca Karoline Leavitt, “insistir na política de DEI (Diversidade, Equidade, e Inclusão) ao incluir livros inapropriados para crianças na biblioteca nacional”.
Nota: todos os livros publicados nos EUA são automaticamente incluídos na Biblioteca do Congresso.

Ao favorecer IAs, Donald Trump causará a ira dos detentores de direitos autorais, pequenos e gigantes (Crédito: Chip Somodevilla/Getty Images)
Embora a demissão de Perlmutter do Departamento de Direitos Autorais não tenha sido ligada oficialmente ao relatório, o timing é coincidente demais, bem como a crescente pressão das big techs para que as regras em torno da coleta de dados para IAs sejam afrouxadas. As regras atuais endossadas pela DMCA (Digital Millenium Copyright Act), de alcance global, são bem claras:
- Para usar conteúdos protegidos, é preciso pedir permissão junto aos detentores, e consegui-la de modo oficial;
- Usou, pagou;
- Usou sem pedir permissão (pirataria inclusa), ou usou e não pagou, processo.
A DMCA protege todos os criadores, desde os pequenos como artistas independentes, às maiores corporações do planeta, e não há meios-termos quanto aos termos de uso de material com copyright. Caso Trump entenda o uso aceitável como aplicável ao treinamento de IAs, e o novo entendimento seja endossado pela Suprema Corte, usando o caso Oracle vs. Google como precedente, a DMCA, sendo uma lei americana, não mais poderá ser usada para processar startups que treinam algoritmos com conteúdo protegido
Isso sujeitaria criadores a recorrerem a leis locais, enquanto a coleta de suas obras nos EUA e seu uso em soluções globais em novas IAs não seria mais punível, nem renderia um tostão sequer, mas lembre-se que a Casa Branca não quer nenhum país pressionando ou processando as empresas americanas, em nenhum lugar do mundo, uma nova forma de aplicar a “diplomacia do porrete”: quem não se sujeitar ao America First vai apanhar economicamente, com tarifas e outras sanções.
Caso o uso aceitável não se aplique, as big techs têm um plano alternativo radical: convencer o governo Trump a revogar por completo as leis norte-americanas de propriedades intelectuais, e forçar economicamente os demais países a fazerem o mesmo. Jack Dorsey, co-fundador do Twitter, e Elon Musk, atual dono da rede social, hoje X, concordam nesse ponto.
Tal movimento teria inúmeras ramificações, que não caberiam neste texto; só para citar uma, a pirataria de software, games, música, filmes, etc. deixaria de ser um crime.
I agree
— gorklon rust (@elonmusk) April 11, 2025
Na prática, executivos consideram o “roubo legal” (na falta de termo melhor) de conteúdos protegidos por lei como o único meio para permitir a evolução da IA generativa, permitindo que OpenAI, X, Google, Microsoft, Perplexity, etc. sejam livres para usarem tudo o que puderem coletar, não importa como, da maneira que acharem melhor, com zero custos. E ao que tudo indica, Trump concorda com essa linha de pensamento, para garantir que os EUA continuem à frente do setor.
A oposição democrata considera ambas demissões ilegais (Hayden foi apontada para dirigir a Biblioteca do Congresso em 2016, e cumpria um mandato de 10 anos; esta indicou Perlmutter em 2020), enquanto a Casa Branca não emitiu comentários sobre a demissão da diretora do Departamento de Direitos Autorais.
Fonte: Politico